domingo, 23 de março de 2014

Sobre o heavy metal na minha vida

Eu era uma criança paulistana comum. Com pais que trabalhavam, eu ia pra escola e voltava, fazia a lição de casa, brincava com minhas bonecas, ouvia as músicas da Angélica. Era filha única. Eu tinha oito anos. Meu pai nessa época tinha um açougue e às vezes eu ia lá comer um Polenguinho. Com ele trabalhava um rapaz vizinho, o Claude.

Claude tinha 16 anos, exatamente o dobro da minha idade. Até hoje quando nos encontramos na rua e eu o vejo com os mesmos olhos verdes e o cabelo castanho cacheado e comprido (agora ele tem alguns quilos a mais) eu lembro de quando ele passava na rua com as roupas pretas e acessórios com tachas. Claude trabalhava e conversava sobre música com o meu pai, que tinha 30 anos na época. Era 1988 e o Guns N' Roses começava a estourar. Claude emprestava LPs para o meu pai, que me acordava todos os dias tocando cada dia um rock diferente no último volume e me dizendo que um dia eu ia gostar.

Meu pai não estava errado, mas Claude nem deve sonhar que ele influenciou não só o meu gosto musical, como também o gosto do meu irmão, que nem sonhava em nascer naquela época. Pois Claude apresentou todas as "novas" bandas de rock e metal (porque o meu pai sempre foi roqueiro de Queen a Black Sabbath) e meu pai passou a ouvi-las tanto que hoje meu irmão tem 24 anos mas a banda preferida dele é o Guns.


Eu, ontem, no caminho para o show do Metallica, quando levantei no ônibus para descer no ponto mais perto do estádio, e junto comigo levantaram mais uma meia dúzia de tatuados e vestindo preto, sorri internamente. Pelos olhares amedrontados das "pessoas normais" que também estavam no mesmo ônibus. Por fazer parte da galera de preto. Pelo olhar de orgulho que recebi dos colegas de preto. Por estar vestindo pela primeira vez uma camiseta de caveira na vida. Por andar até o estádio ouvindo não as conversas fúteis que ouço as pessoas falando nos shows onde o público é mais novo. O público do Metallica comenta de política, de filmes, de tecnologia. Por ver pessoas reclamando de dor na perna, assim como eu, e me sentir inserida. Esse é o meu mundo, esse é o meu clube (e haja tatuados e cabeludos!). E, chegando lá, passado o medo inicial por ver 65 mil pessoas, em sua grande maioria homens muito maiores que eu (e olha que eu nem sou pequenininha), ver que eles pediam licença ao passar e tentavam ser educados. Por ver que eles respeitam as mulheres. Por, apesar da empolgação, ver que ninguém encostou em mim. Ninguém brigou perto de mim. E, apesar da maconha rolando solta, eu não ouvi um palavrão.

No palco, uma banda de cinquentões do heavy metal, mas cheios de simpatia. Cheios de humildade e interação. Eles têm aquele olhar de banda que sabe que está ali por causa da galera. Têm a ternura de uma banda que toca na chuva com as pessoas. Têm a sensibilidade de fazer um show cujo público escolheu TODAS as músicas do repertório. E eles tocaram com emoção, apesar de cada uma já ter sido tocada milhares de vezes em suas vidas. Têm a segurança em saber que, ao receber um fã no palco, não precisa necessariamente sair beijando na boca dele pra dar ibope (aprenda, Mr. Jon Bon Jovi).

Foi um dos melhores shows que eu já vi em toda a minha vida. E meu pai suspeitou que eu estava lá (eu só contei que ia num show, não contei de quem), minha mãe torceu pra eu não bater em ninguém (até parece que eu sou louca de bater em alguém no show do Metallica - eu só bato em gente que acha que é homem no show do Bon Jovi), minha avó nem sonhou que eu estava lá (vestindo camiseta de caveira ainda, imagina) e Claude... se ele soubesse não ia acreditar!


sábado, 8 de março de 2014

E olha que eu nem bebi

Um dia de semana normal. Vida normal. Eu, feliz, acordei de madrugada como sempre, tomei café como sempre, dirigi até o estacionamento como sempre, peguei metrô como sempre. Meu caminho para o trabalho de todos os dias, como sempre. Eu amo a minha rotina. 

Sempre achei que é no caminho para o trabalho que as coisas mais inusitadas acontecem. Desde a época em que o "trabalho" era a escola, era no ônibus que eu ouvia as conversas do tipo "ô, Cleidê, então, o José Ricardo, minina, arteiro que só, pois engravidou a Juliana Carla, filha da Neide, cê acredita?". Ah como eu me divertia com as conversas que ouvia no ônibus. Até hoje, em dias que eu preciso correr Avenida Paulista afora, por causa de manifestações. Assim é a vida de aventuras no espaço de tempo que estou entre casa-trabalho e vice-versa. No metrô, mesmo menos interessante que um ônibus, já que acaba sendo um tempo mais rápido e com pessoas mais apressadas, há menos causos e histórias alheias pra ouvir. Mas nem por isso há menos emoção. Pois a amiga até arrumou um romance em 10 minutos que fica dentro de um metrô!

Enfim, estava eu em um dia de semana normal, indo para o trabalho normalmente, sentei no lugar do metrô e aguardei a chegada na estação que eu desço. Na estação seguinte, como sempre, entraram mais várias pessoas, dentre elas um homem de meia idade com uma enorme mala preta e sentou no lugar perpendicular na minha frente. Metrô, né. Sabe como é. A gente não tem nada pra olhar por além das janelas (já que a linha que eu pego passa todo o percurso por baixo da terra) e começa a reparar nas pessoas. Eu, pessoa que odeia cruzar olhares com desconhecidos, costumo reparar em sapatos. Tenho curiosidade pra saber que livros as pessoas estão lendo. Reparo em modelos de bolsas. Nesse dia, reparei na mala do homem. 

Simples, preta, de tecido mais resistente, daqueles que geralmente as pessoas usam pra fazer mochilas. Porém grande, daquele tamanho maior de malas. Quase um metro de mala, se duvidar. E o homem era mestiço com japonês. "Vai fazer baldeação e descer na estação Liberdade", pensei. E absorta em meus pensamentos, fui me distraindo até ouvir piados de passarinhos.

Em volume bem baixo, eu ouvia vários passarinhos piando. A princípio esse som entrou na minha mente imperceptível, mas depois passei a reparar e a pensar a respeito. Eu, no metrô. Ouvindo passarinhos. Que por mais que estivessem entrado no subterrâneo, seria impossível ouvi-los com o barulho do próprio metrô. Meus ouvidos. Talvez fosse hora de visitar um otorrino, já que meu trabalho usando fones de ouvido constantemente pode ter começado a prejudicar a minha audição. Mas daí eu deveria ouvir apitos, e não passarinhos. Foi então que eu reparei novamente no homem. E em sua grande mala preta. E descobri, incrédula, que os piados dos passarinhos vinham da mala. Baixinho, porém muito perceptível. E então eu arregalei os olhos e fiquei muito assustada com o que eu estava presenciando ali.

Passei a olhar para as outras pessoas no metrô, como quem está no meio da multidão e NÃO ACREDITA que ninguém mais percebeu o que está acontecendo. Sabe gente que reclama? Do governo? Da fila do banco? Gente que começa em tom de voz mais alto com "é um absurdo"? Então. Eu, relativamente menos barraqueira que a maioria da humanidade, tive minha expressão corporal igual às dessas pessoas, mas sem falar nada. Passei a me mexer loucamente no banco, olhando para os lados, olhando pra trás, com olhar indagador de MAS É UM ABSURDO QUE VOCÊS NÃO ESTÃO VENDO ISSO. Ali, bem na minha frente, dentro do metrô, em plena São Paulo, em horário de pico... havia um contrabando de pássaros. Em uma mala enorme e preta sendo carregada por um japonês. Assim, diante do nariz de todo mundo. Loucura. Absurdo. ALGUÉM LINCHE ESSE HOMEM QUE ESTÁ AQUI NA MINHA FRENTE, peloamordedeus. Ao mesmo tempo em que eu olhava nos olhos das pessoas e esperava uma viva alma que levantasse a voz pra dizer SEU BANDIDO SAFADO CONTRABANDEADOR DE PASSARINHOS eu pensava nos pobres passarinhos. Ali, dentro daquela mala preta e enorme. Sem ar. Enfiados uns em cima dos outros, em condições precárias, em jaulas sem água e sem comida. Perdendo as penas, os coitadinhos. Com certeza a grande maioria morrerá até chegar em seu destino. Esse homem deve ter colocado um forro de papelão entre suas gaiolas e a mala, a fim de abafar o som de seus piados agonizantes. Mas eu tenho uma audição perfeita. Ainda mais agora trabalhando com fones de ouvido. Eu ouço tudo, maravilhosamente. Meus ouvidos apuraram minha audição, devido ao uso. Quase como O Demolidor. E mesmo com toda a sua estratégia de abafar o som dos passarinhos, seu desumano, eu consigo ouvi-los. Consigo mensurar sua dor. Seu sufocamento. Tomara que esse homem morra antes de chegar na estação Liberdade. Porque aqui nesse metrô todo mundo é surdo, mas a justiça divina nunca falha. E quando ele levantar desse banco e tiver um infarto bem aqui no meio da população....

.... e então o homem abriu um bolso daqueles menores do lado de fora da mala. E tirou o celular. E desligou o alarme. E o barulho de passarinhos cantando parou.


E eu levantei na minha estação e fui trabalhar com a maior cara de tacho desse mundo.





quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

"É só mais um dia. Passados os fogos, minutos depois, tudo o que acontece é que é um dia comum. Como qualquer outro."

- funcionário do estacionamento 24 horas cujo qual deixamos o carro neste Réveillon. Ele trabalhou na virada, sentado em um banco, em um cubículo, sozinho e sem tv. Aproximadamente 2:30h da manhã.

E eu bem acho que ele tem razão.