Eu era uma criança paulistana comum. Com pais que trabalhavam, eu ia pra escola e voltava, fazia a lição de casa, brincava com minhas bonecas, ouvia as músicas da Angélica. Era filha única. Eu tinha oito anos. Meu pai nessa época tinha um açougue e às vezes eu ia lá comer um Polenguinho. Com ele trabalhava um rapaz vizinho, o Claude.
Claude tinha 16 anos, exatamente o dobro da minha idade. Até hoje quando nos encontramos na rua e eu o vejo com os mesmos olhos verdes e o cabelo castanho cacheado e comprido (agora ele tem alguns quilos a mais) eu lembro de quando ele passava na rua com as roupas pretas e acessórios com tachas. Claude trabalhava e conversava sobre música com o meu pai, que tinha 30 anos na época. Era 1988 e o Guns N' Roses começava a estourar. Claude emprestava LPs para o meu pai, que me acordava todos os dias tocando cada dia um rock diferente no último volume e me dizendo que um dia eu ia gostar.
Meu pai não estava errado, mas Claude nem deve sonhar que ele influenciou não só o meu gosto musical, como também o gosto do meu irmão, que nem sonhava em nascer naquela época. Pois Claude apresentou todas as "novas" bandas de rock e metal (porque o meu pai sempre foi roqueiro de Queen a Black Sabbath) e meu pai passou a ouvi-las tanto que hoje meu irmão tem 24 anos mas a banda preferida dele é o Guns.
Eu, ontem, no caminho para o show do Metallica, quando levantei no ônibus para descer no ponto mais perto do estádio, e junto comigo levantaram mais uma meia dúzia de tatuados e vestindo preto, sorri internamente. Pelos olhares amedrontados das "pessoas normais" que também estavam no mesmo ônibus. Por fazer parte da galera de preto. Pelo olhar de orgulho que recebi dos colegas de preto. Por estar vestindo pela primeira vez uma camiseta de caveira na vida. Por andar até o estádio ouvindo não as conversas fúteis que ouço as pessoas falando nos shows onde o público é mais novo. O público do Metallica comenta de política, de filmes, de tecnologia. Por ver pessoas reclamando de dor na perna, assim como eu, e me sentir inserida. Esse é o meu mundo, esse é o meu clube (e haja tatuados e cabeludos!). E, chegando lá, passado o medo inicial por ver 65 mil pessoas, em sua grande maioria homens muito maiores que eu (e olha que eu nem sou pequenininha), ver que eles pediam licença ao passar e tentavam ser educados. Por ver que eles respeitam as mulheres. Por, apesar da empolgação, ver que ninguém encostou em mim. Ninguém brigou perto de mim. E, apesar da maconha rolando solta, eu não ouvi um palavrão.
No palco, uma banda de cinquentões do heavy metal, mas cheios de simpatia. Cheios de humildade e interação. Eles têm aquele olhar de banda que sabe que está ali por causa da galera. Têm a ternura de uma banda que toca na chuva com as pessoas. Têm a sensibilidade de fazer um show cujo público escolheu TODAS as músicas do repertório. E eles tocaram com emoção, apesar de cada uma já ter sido tocada milhares de vezes em suas vidas. Têm a segurança em saber que, ao receber um fã no palco, não precisa necessariamente sair beijando na boca dele pra dar ibope (aprenda, Mr. Jon Bon Jovi).
Foi um dos melhores shows que eu já vi em toda a minha vida. E meu pai suspeitou que eu estava lá (eu só contei que ia num show, não contei de quem), minha mãe torceu pra eu não bater em ninguém (até parece que eu sou louca de bater em alguém no show do Metallica - eu só bato em gente que acha que é homem no show do Bon Jovi), minha avó nem sonhou que eu estava lá (vestindo camiseta de caveira ainda, imagina) e Claude... se ele soubesse não ia acreditar!