quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Cria do papai

Meu pai sempre fez questão de que eu fosse independente. Não tinha essa de pedir pra buscar na escola. Ou era a perua escolar, ou eu que me virasse. Choveu, ventou, machucou o pé? Problema seu. Tinha aquela prova ferrada que todo mundo ia tirar zero? Você só estuda nessa vida, que faça direito. Professor particular é um item que nunca fez parte da minha vida. Levou a blusa? Se não levou vai passar frio. Esqueceu o lanche? É bom que emagrece. Vai sair? Que bom. Que? Alguém levar? Buscar? Esquece. Eu sempre acordei antes das 6h da manhã pra ir pra escola e sempre fui eu que fiz meu café. Leite com nescau, pra ser mais precisa. Não tem pão? Vai buscar. Eu que não ia madrugar mais ainda pra comprar pão, então sempre fiquei satisfeita com o meu leite. Sempre arrumei minha cama antes de sair. Com a luz apagada e sem fazer barulho, pra não acordar os outros moradores da casa. Sempre fiz minhas refeições sozinha. Não importa qual, desde pequena eu acostumei a comer sozinha. E companhia nessas horas nunca fez diferença na minha vida, afinal eu aprendi assim. Minha mãe me ensinou a cozinhar cedo e ai do dia que eu resolvesse queimar ou passar do ponto alguma coisa. E me ensinou também a cuidar da casa e das roupas, essas sempre naqueles dias de 'eu não vou mais lavar nem passar a sua roupa!' que todo mundo presencia um dia. Aprendi, além de me virar sozinha, a cuidar do meu irmão. E se pensarmos bem a respeito disso eu posso dizer pra vocês que já fui mãe. Porque cuidar de um irmão 10 anos mais novo nos faz mães.

A iniciativa de voltar da escola de ônibus foi minha, a de procurar o primeiro emprego também. Vestibular, faculdade, ônibus que tenho que pegar, estação de metrô que tenho que descer. Eu. E aí eu aprendi a me arrumar e a andar pela cidade mesmo sendo a pessoa mais perdida da face da Terra. Aprendi a namorar, porque se todas as outras coisas eu aprendi sozinha, imagina isso que ninguém precisa ensinar. E então meu pai se preocupou em saber se eu já tinha aprendido a me cuidar. Não tanto no sentido de usar camisinha e tal, porque essa parte da vida ele acha que já veio inserido um chip em mim desde que nasci - era óbvio demais pra ensinar. Mas no sentido de não ser capacho, não ser maltratada, não ser mandada. Aprendi com ele a não ser dependente de homem nenhum. Com meu pai, e não com a minha mãe - porque eles são casados há 30 anos e ela nunca foi desse tipo de mulher que queima o sutiã e levanta a plaquinha do feminismo. Aprendi com meu pai. Fato curioso e que me faz pensar se, justamente por ser homem... ele tenha feito isso porque é prova concreta de que não devemos depender deles.

Aprendi a dirigir, mesmo sendo total fora do meu interesse na época - porque eu tinha um namorado que me levava pra cima e pra baixo. E aí meu pai entrou na história com aquele velho ar de 'você, garota do papai, vai dirigir melhor que todas as outras mulheres, porque você é minha filha e é lógico que é capaz'. E fui. Sabendo que chantagem emocional desse tipo - uma ameaça de decepção se você não conseguir - é ainda pior do que qualquer raiva. E consegui bem.

Com meu pai aprendi a jogar xadrez e a ter ar superior, seja jogando War ou na vida mesmo. Aprendi a fazer cara feia. Aprendi a calibrar o pneu sem precisar de ajuda. Aprendi a matar minhas próprias baratas. Aprendi a ter um seguro auto mulher e a pagar pra trocarem o meu pneu se não quiser esperar o seguro chegar. Aprendi a entender de finanças e a fazer mudança sozinha. Aprendi a passar massa corrida na parede. A trocar a lâmpada e a resistência do chuveiro. Aprendi a não olhar pra os lados quando ouvir um psiu na rua. Aprendi a controlar meus medos e sentimentos. Aprendi a não demonstrar fraqueza. Aprendi a não chorar. Aprendi a controlar meu dinheiro, minha vida. Aprendi a controlar a mim mesma. Aprendi a não precisar de ninguém.

Passa bem longe de minhas intenções esse negócio de pegar desesperadamente um cara qualquer, como vejo muita gente por aí fazendo. De mostrar que tou namorando. Tem gente que pega um infeliz qualquer que tava passando e mesmo sendo desdentado e vesgo, dá a mão e vai passear no shopping pra mostrar que namora. Ou dar pra um cara que te come e te usa o tanto que quiser enquanto você sonha que ele vai se apaixonar pelos seus lindos fundos e querer casar amanhã e você está até pensando no nome dos filhos que terá com ele já. Ou ainda aquela situação que a gente tá careca de saber, que a mulher é amante e sonha lindamente com o dia em que o cara vai largar a família dele pra ficar com ela. Falta de amor próprio total. Ô burrice. Aprendi a não precisar manter aparências. Aprendi a dar valor ao que eu sou e ao que eu quero, antes de pensar em mostrar alguma coisa pra alguém. Aprendi que antes só do que respirar fundo e contar até 387 enquanto tento sorrir para uma pessoa ao meu lado que me irrita profundamente.

Eu sou independente e me orgulho disso. Se eu quiser eu vou, faço, pinto, bordo e danço Can-Can, sem precisar de ninguém. Mas se eu não quiser, não vou e pronto. Esses dias eu não conseguia abrir uma garrafa de vinho e a amiga sugeriu que fôssemos pedir para o porteiro. Que mané porteiro, minha gente!! Eu ia conseguir sozinha nem que fosse quebrando a garrafa, mas ía! E consegui, claro. Porque eu sou foda, lógico.

Nesse mundo em que mulheres são criadas para viver sozinhas e que meninas pequenas fazem cara feia em resposta à palavra casamento, nada mais é como era antigamente. Os homens não precisam mais se esforçar para ter uma mulher, agora eles precisam é correr. Porque o que chamam de atitude pra mim soa a 'quem pegar primeiro ganha'. E mesmo assim ganha só por hoje ou por alguns minutos, porque no tempo seguinte alguém pode ganhar a corrida do ovo na colher na sua frente, porque além de fazer em menos tempo a pessoa ainda pode vir assoviando tico tico no fubá.

Hoje o sexo frágil é o homem, que mal consegue administrar uma única mulher. E os que conseguem se sentem frustrados por ter só uma enquanto a oferta de mercado feminino pulula feito pipoca na panela pequena. E cabe a nós, mulheres, a sensação de sempre desconfiar. Mentira que esse cara está só comigo se todo o resto da masculinidade do mundo tem pelo menos meia dúzia. Desconfiança que dá lugar a mimo e a tratar um cara como se estivesse num pedestal, porque se esse cara tem só você com tanta mulher pululando, minha filha.... dê ouro em pó na boquinha pra ele comer.

Tudo isso pra dizer que eu, ontem, estava lá toda calma na aula de dança e parei pra pensar que a dança é o único lugar hoje em que as mulheres são frágeis e cuidadas e os homens são fortes e machos que coordenam tudo e fazem com que tudo saia perfeito e que não precisemos nos preocupar com nada. E então que aprendemos um passo novo no pagode que se chama cambrê. Consiste de uma posição que o cavalheiro joga a dama para trás e a segura pelas costas e cabeça. E então, debaixo das orientações do professor de 'segurem na cabeça da dama, não no pescoço, não no ombro. Porque só segurando na cabeça vocês as protegem de um impacto na coluna que causa princípio de asfixia e elas podem morrer.'

Tá que eu tenho que deixar um homem qualquer me segurar na aula de dança. Zelar pela minha vida, pra ser mais franca. Me soltar nos braços de um cara que eu não sei de onde vem nem pra onde vai e nem se tem interesse em me proteger. Nem se consegue, nem se tem capacidade, nem se alguém já ensinou pra ele o que é uma coluna cervical. Nem se ele sabe onde é a minha cabeça. E eu, que sempre fui autosuficiente... não gosto da experiência de colocar a minha vida nos braços de um homem não.


6 comentários:

  1. Uau. Que texto excelente... eu queria ser tão independente quanto você, sabe? Beijos :*

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  2. Bih disse:é nesse mundo nao gira em torno deles nãoo...eu tb era da onda"nescau com leite" e de ir a pe´ou de onibus pra qualquer lugar sozinha..ser independete tem sim suas muitas qualidades eu apoio vc nisso..
    que os homens aprendam a respeitar e valorizar isso aiii se naoo

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  3. Ah, eu queria ter um pouco dessa sua independência =X
    Beijos Re!

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  4. Caralho, que texto!

    Com meus pais eu aprendi justamente o contrário: a ser a filha perfeita, não desgrudar da barra da saia da minha mãe, a ter todos os meus horários controlados e todas as minhas tarefas metodicamente arranjadas especialmente pela minha mãe, incluindo indas e vindas.

    Por isso, com certeza, eu busquei toda a minha (poua) independência sozinha, na marra. E, se tirei algo disso, é essa experiência que seu pai lhe ensinou tão bem, de deixar que os filhos se desenvolvam sozinhos.

    Hoje, ao menos eu acho, eu também danço Can Can se for preciso. Sozinha.

    Me encantei com esse texto. parabéns! beijos

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  5. Olha, eu achei perfeito seu texto! Talvez eu precisasse de um pai como o seu. Mas bem ao contr[ario do que vc viveu, só filha de pais separados e acho que por um bom tempo da minha vida foi mimada e poupada de muita coisa.... E hj, acredito ser bastante também. Gostaria de ter metade da sua independencia.
    Adorei suas palavras!
    Parabéns pela mulher que és!

    Beijos!

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  6. eu acho que é importante vc saber se virar sozinha, eu sei me virar sozinha (tipo a historia da garrafa, quebro essa porra mas abro!).
    Só que acho que as vezes as mulheres poderiam mostrar um pouquinho de fragilidade (nao precisa ser retardada), porque os homens nem estão tendo espaço mais para cuidar das mulheres, elas não dão! Dai so sobra a aula de dança mesmo...

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