Um dia normal. Eu acordei normalmente. Andei até o banheiro cambaleando normalmente como faço todos os dias. Escovei os dentes, troquei de roupa, passei maquiagem, tomei café e fui trabalhar. Peguei o metrô, andei alguns quarteirões, passei o crachá na catraca, chamei o elevador, abri a porta, sentei na minha cadeira e liguei a tela do computador pra ler meus e-mails. Como faço todos os dias. E então eu abri o e-mail que mudaria totalmente o meu conceito sobre dar aulas na vida.
Eu nunca quis dar aulas. Nem pra alunos, nem pra amigos, nem pra ninguém. Quem me conhece (e tem uma pessoa perdida no mundo que me conhece MUITO nesse sentido) sabe que eu pra explicar alguma coisa pra alguém sou a maior lástima da face da Terra. Mas tem um motivo: eu nunca tive dificuldade na escola. Eu sempre fui bem em todas as matérias. Meu boletim era todo azulzinho e as minhas menores notas, aquelas em que eu ia mal mal MAL mesmo (tipo Geografia e História) eram 6 ou C. E eu nunca fiquei de recuperação nem de DP na minha vida. Ou seja: eu sempre entendia as matérias. Os conteúdos. Eu entendia quando os professores explicavam. Minha matéria preferida era matemática e eu sempre achei fascinante como era lindo a gente fazer páginas e mais páginas de uma única conta e no fim, adivinha: o resultado era o certo. Tudo muito bom, tudo muito bem.
Eu nunca tive dificuldade em aprender nada (até hoje eu aprendo as coisas com facilidade e muitas vezes sozinha) e por isso mesmo nunca entendi as pessoas que têm. Esse povo que pergunta milhares de vezes a mesma coisa. Aqueles que o professor explica tudo cinco vezes e a pessoa ainda vai mal na prova. Gente que tem dificuldade mesmo, mas quando eu estava na escola achava que era só burrice. E talvez eu ainda ache. Não sei. Sei que eu, que nunca tive dificuldade, também nunca tive paciência com quem tem. E quem estudou comigo sabe muito bem que eu entendia tudo da matéria e até tentava explicar para os colegas que não entendiam. E eu explicava uma vez. Duas. Três. E se a pessoa ainda não tinha entendido, a minha reação era sempre "dá aí que eu faço pra você". Eu não tenho paciência pra explicar nada. Eu entendo tudo lindamente, mas na hora de tentar fazer alguém entender também eu sou capaz de bater pra ver se a pessoa fica mais esperta e entende. Eu tenho a delicadeza de um elefante na hora de explicar alguma coisa pra alguém.
Talvez por isso eu sempre achei lindas as pessoas que ensinam. Talvez por isso eu lembre até hoje das primeiras professoras que eu tive, lá no Jardim I. E de todas as que se seguiram depois. Talvez por isso eu lembre da admiração que eu tinha pela professora de matemática mais incrível dessa vida. E da de português, que era a simpatia em pessoa. E da professora de história que parecia ser amiga de Dom Pedro. E da de ciências que contou pra minha mãe que eu estava cabulando aula. E da de educação física que pegava horrores no meu pé. Todas, boas ou ruins, incríveis e enormemente importantes em toda a minha vida. Todas me ajudaram a ser o que eu sou hoje. E se eu me orgulho do que sou hoje, eu devo grande parte disso a todas elas.
Na hora que eu abri meu e-mail, meu coração palpitou. Em um e-mail de atitude social da empresa, estava o convite para participar de uma ação de voluntariado para dar aulas de ética em uma escola pública. E, em meio a erros no nome da escola que eu quase liguei para o RH pra pedir pra corrigirem, estava lá: a MINHA escola. O nome que por tantos anos estampou a camiseta do meu uniforme. E as minhas provas. E estampa até hoje o meu histórico escolar. O meu currículo.
Mas, mais importante que isso, estampa também o meu coração. Estampa a melhor fase da minha vida. Estampa o melhor ano da minha vida. Estampa tudo o que eu aprendi lá além das aulas e das matérias. Estampa as tantas fugidas da aula. Os tantos namoricos. As tantas vezes que eu briguei e fiz as pazes com amigos e primeiros namorados. Estampa o tão falado "atrás da escola", onde tudo acontecia. Estampa meu desenvolvimento humano, pessoal. Meu relacionamento com tudo e com todos. Meus primeiros medos, minhas primeiras responsabilidades e também minhas primeiras irresponsabilidades. Meus pensamentos a respeito de que tipo de pessoa eu queria e que tipo de pessoa eu não queria ser. E cada cantinho daquele terreno que fará pra sempre parte da minha vida e da minha história. Cada vez que eu sentava na escadinha ouvindo meu Bon Jovi no meu walkman e à espera de tudo o que ainda viria na minha vida. Tantas coisas.
Saudade. Saudade de tudo. Saudade de todos. Saudade daquela escola.
Uma vez alguém disse (deve ter sido a Tary) que acha legal em mim que eu gosto de tudo o que é meu. E é mesmo verdade. Eu gosto da minha vida, das minhas coisas, das minhas pessoas, do meu país, da minha comida, da minha história. E não trocaria nada do que eu tenho por nada do que as outras pessoas têm.
Eu estudei em algumas escolas na vida e todas têm o seu espaço no meu coração e minha respectiva saudade. Mas duas delas são mais importantes por eu ter passado mais tempo da vida (e consequentemente aconteceram mais mudanças em mim mesma enquanto eu as frequentava). Uma delas é essa em que eu fiz o colegial (chamava assim na minha época, mas hoje até já mudou o nome pra "ensino médio").
Estudei lá dos 15 aos 17 anos. Primeiro, segundo e terceiro colegial, os melhores anos da minha vida. Eu passei, naquele prédio e debaixo daquelas árvores e correndo da professora de educação física naquelas quadras e cantando pagode com as amigas naquele pátio, a minha adolescência incrível. Faz tanto tempo que até parece que foi em outra vida. Mas é tanta saudade que às vezes eu até sonho que estou lá. Naquela época. Naquele lugar.
Eu sou muito-muito-muito grata à minha mãe por ter me colocado pra estudar em escolas públicas nessa vida. Não sei se hoje é a melhor opção, mas naquela época eu tive até que fazer prova pra entrar nas minhas escolas, porque não era qualquer um que entrava. Tinha maracutaia, precisei de um endereço falso. Minha mãe ficou na fila da vaga da escola de madrugada e eu tive a sorte de ser sorteada (sorteio mesmo, tipo bingo, com comemoração e tudo) pra estudar lá. Era uma época em que as escolas públicas eram muito melhores que as particulares e conseguir uma vaga em algumas era semelhante a passar na Fuvest. Eu consegui. E além de ter podido estudar nas melhores e mais famosas escolas da época (todo mundo da região conhece até hoje a fama das melhores escolas públicas de todos os tempos), eu aprendi também a lidar com o mundo. Porque é sim uma escola pública, mas é no Morumbi. Ou seja, tinha alunos desde os mauricinhos e cheios da grana do Morumbi, até o pessoal mais humilde do Capão Redondo. Nas minhas escolas da vida eu aprendi não só as matérias, mas também a lidar com todo tipo de pessoas. E foi lindo.
Eu não tive dúvidas quando cliquei em "aceitar" no meu e-mail de voluntariado pra dar aula na MINHA escola. E essa semana eu darei aulas pra adolescentes de 15, 16 e 17 anos, exatamente as idades que eu tinha quando vivi os melhores anos da minha vida, em 1995, 1996 e 1997. E então, pensando nisso, me dei conta de que, enquanto eu estava lá na minha escola vivendo tudo aquilo que foi tão bom e tão memorável, havia pessoas nascendo. Pessoas nascendo, naqueles anos tão mágicos da minha vida. E adivinha: são exatamente para essas pessoas que nasceram naqueles anos, que eu vou dar aulas. Eles têm exatamente a metade da minha idade. E estão nos anos mais memoráveis das vidas deles.
Eu vou chegar lá, com roupa social e sapato de salto, ser olhada e questionada por olhos curiosos e cheios de perguntas. Olhos de moletom e camiseta branca. Olhos que eu tinha enquanto estava na idade deles. E então, quando eu paro aqui pra pensar se vou ter medo ou não de dar aulas para adolescentes, lembro como eu era, há exatos 16, 17 anos, quando chegava alguém de social e salto alto na escola. Eu tinha curiosidade. Tinha medo. Fazia cochichos de "nossa, quem será que é e o que veio fazer aqui?"
Estou ansiosa pra poder dizer pra eles que eu sei como é. Que sei o que é. Que conheço cada um daqueles cantinhos daquele que não é um simples prédio. E que, lá fora, naquela árvore, ainda está escrito o meu nome, que eu cavei com uma caneta pra deixar marcado no caule. Que eu estudei lá, conheci a diretora mais famosa da história da escola e que ela era fazia sim uma escola inteira e milhares de adolescentes andarem na linha. Porque ela conhecia todos eles pelo nome.
Quero dizer pra eles que estudar lá foi uma das coisas mais importantes que eu fiz na vida. E que me trouxe mais tantas outras coisas importantes que tive na vida. E hoje eu sou o que sou também porque estive lá enquanto eles estavam nascendo.