Eu estava na minha vidinha normal de pegar o metrô de São
Paulo todos os dias para ir e voltar do trabalho. Ah, linha amarela. Aquela que
tem barreira de acrílico na catraca. Aquela que a gente pega 25 escadas pra
descer e pra subir todos os dias. Por isso, a linha mais perto do inferno que
existe. Mas é a melhor da cidade. E, se o metrô de São Paulo é o melhor do
mundo, então a linha amarela do Metrô é a melhor do mundo. E eu até concordo.
Tirando o cheiro de cachorro molhado por causa dos assentos de tecido e tirando
essa coisa de parecer que vai cair a bunda da galera se todo mundo não entrar
atropelando quem está saindo e correr desesperadamente como uma dança das
cadeiras para sentar nem que seja apenas por 4 minutos, que é o tempo que dura
de uma estação à outra. Tirando isso, e tirando o coreano que deixa o nariz
escorrer até a jaqueta de couro, formando aquele horroroso fio de catarro bem
na minha frente sem nem ao menos se mexer tentando disfarçar, e tirando o
casalzinho chinês, que no caminho para o cursinho, todos os dias, vai se
melando de maneira bem indecente todos os dias no metrô. Tirando todos esses
poréns, o metrô da linha amarela de São Paulo é mesmo bem boa.
E então, em meio a meus pensamentos, de repente eu penso
estar na escotilha. Aquela, em que o Desmond esteve durante tanto tempo. Que
não podia sair pois era preciso colocar um código todos os dias quando a sirene
começava a tocar. E então agora meu plano de som ao fundo se resume a Make your
own kind of music, sing your own special song na voz da incrível Mama Cass. E
os sussurros dOs Outros. E Sawyer. Ô lá em casa.
Ah é. Eu estou no metrô. Indo trabalhar. E não no Lost.
Chegou o metrô. E tomara que o coreano do catarro não sente
perto de mim, que senão dessa vez eu vou mesmo vomitar. E as mesmas pessoas. A
mesma turminha de alunos do Liceu. A mesma dupla de mãe e filha que eu sempre
imagino estarem indo ao médico. O mesmo cara que há 15 anos atrás eu acharia
bonitinho, mas agora como eu já cresci e sou mulher sei que ele é só o tipo de
cara que é bonito por fora e vazio por dentro – e que, daquele livro do cursinho
que ele está lendo, deve estar absorvendo menos de 5% porque quando ele chegar
lá vai ter alguma menina apaixonada burra que vai tentar ensiná-lo a matéria em
vão. E a mesma menina estudante do Mackenzie, com aquele mesmo estereótipo de
cara de burra porém calça agarrada, igual à tantas outras. E então, esperando
chegar na minha estação, eu canso de olhar para os rostos das pessoas e passo a
olhar os pés. É sempre divertido olhar os sapatos das pessoas no metrô. Aquele
ali de plástico. E aquele lá com o tênis rasgado. A mulher de bico fino e salto
alto, que do alto da pose só quem já sentiu na pele é que sabe o tamanho da dor
que ela sente nos pés. E um par de coturnos. Pretos, sujos. Um amarrado, outro
não. Um dobrado ao meio, outro não. Um com a barra da calça pra dentro, outro
não. Um com os cadarços desalinhados, outro não. E eu, em meio à distração, de
repente fiquei curiosa pra saber o rosto do dono de algo tão surreal e
desalinhado nos pés. E quando meu olhar subiu do corpo dele ao rosto, dei de
cara com alguém que me encarava. E aí eu quase tive um treco. Porque ele tinha
cara de assassino. Daqueles que prendem a gente na mesa cheia de plástico. E
que antes disso já sabem exatamente quem a gente é, porque passou um tempo se
dedicando a conhecer suas vítimas. Ah é. Isso aqui não é Dexter. É só o metrô.
Mas quem me garante, que ali em meio a tantas pessoas, enquanto a gente está no
vuco-vuco da hora do pico no transporte público, quem te garante que aquela
pessoa que escorrega a mão pelo ferro do metrô até encostar na sua mão, não é
um assassino? Quem te garante que aquela criatura que espirra na mão pra logo
em seguida segurar no ferro, não acabou de esquartejar alguém, colocar num saco
de lixo e jogar em alto mar? Em meio a tantas pessoas, com certeza há, ali na
vida cotidiana, algum psicopata? Com certeza há.
Mas a minha estação chegou, e enquanto eu pego minha meia
dúzia de bolsas e saio andando com pressa em meio às pessoas, enquanto tento
desviar de velhinhas, crianças e gente louca que sai correndo pra entrar na
porta em que você precisa sair, porque o limite é o apito das portas, um rapaz
relativamente grande empaca no meu caminho até a escada rolante. Um rapaz alto.
E grande. E que usa uma blusa também maior que ele. Andando desengonçadamente.
Tanto, que eu não consigo ultrapassá-lo. E então, por trás dele, começo a
pensar que ele não tem um jeito bem peculiar. Tanto, que chego a pensar que,
caso haja alguma vida não humana entre nós aqui na Terra, se houver outro tipo
de vida tentando se disfarçar de humano.... talvez aquele rapaz não esteja
conseguindo fazer isso tão bem. Mas ele não tem jeito de ET. Ele está mais para
um Ciclope. Feito Tyson, o meio irmão de Percy Jackson. Tyson, chamando
centauros de pôneis. Colocando nome de Arco-Íris em cavalos marinhos. E
chamando Donuts com açúcar no mato.
Queria chegar logo em casa pra continuar a ler meu livro.
Mas agora eu ainda estou no metrô indo para o trabalho.
Ah, o metrô de São Paulo. Sempre tão cheio. Todo mundo
sempre com tanta pressa. Multidão de gente, todo mundo correndo pra lá e pra
cá, como formigas quando a gente pisa sem querer num formigueiro. Todo mundo
andando na mesma direção, mas sempre tem uma barata tonta no meio do caminho.
Gente pra lá e pra cá, levando com a maré qualquer desavisado indeciso que
estiver no meio. Gente. Muita gente. E então eu passo a imaginar como seria se
toda essa multidão de gente fosse zumbi. Milhares de zumbis, pelos túneis do
metrô. Cadê meu taco de beisebol? Eu preciso realmente comprar um taco de beisebol
para o caso em que um dia todo mundo vire zumbi nos metrôs de São Paulo. Porque
sabem como é: não dá pra atirar em zumbis, porque os outros escutam e isso os
chama pra perto de você. Tacos de beisebol são silenciosos. Mas são milhares de
zumbis. Muitos, vindos dos corredores. E o metrô tem muitos corredores
subterrâneos. Ai Deus, como eu vou sair daqui, do meio desse Walking Dead?
Finalmente, eu no trabalho. Reunião de diretoria. Presidente
da empresa vai falar. E eu, enquanto entendo um indiano falando inglês, penso
que ele parece alguém que eu conheço. Que ele se chama Goku, mas não é com o
das esferas do dragão que ele parece. Não. Ele me parece meio tímido. Um
indiano presidente de uma empresa, porém tímido. E, enquanto ele faz piadas
tentando interagir com os funcionários brasileiros, enquanto ele sorri com a
bochecha rosada apesar da pele morena, eu lembro com quem ele se parece. Rajesh
Koothrappali. Que bebe pra conseguir conversar com mulheres. E que, em meio a
frases inteligentes e dignas de seu cargo de doutor, fala inocentemente
absurdos mal compreendidos por quem os ouve. Ah, Raj. Acabe logo de falar e
chame Sheldon, meu grande ídolo de The Big Bang Theory.
Do meu lado, a colega de trabalho tem o rosto todo vermelho
por algum tipo de reação alérgica que ninguém sabe o que causou. A cada dia, a
pele dela está mais inchada. Os médicos se limitam a dizer que ela está
horrível. Mas eu não. Em conversas casuais, tento entender o que causou toda
essa alergia absurda. Pergunto com quais tipos de produto ela está fazendo
faxina em casa. Analiso momentos em que ela pode estar estressada no trabalho,
e a chamo em meio a eles pra ver se a vermelhidão do rosto dela melhora ou
piora. Pergunto o que ela vem comendo nos últimos dias e sugiro coisas que ela
deveria parar de comer por uns tempos. Pergunto da família dela, se há algo
parecido em alguém. Me certifico de não ser sarcoidose. Nem lúpus. Dr. House
com certeza me contrataria.
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros (e e filmes e séries) e nada mais.
Meus discos e livros (e e filmes e séries) e nada mais.