quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Daniel

Era um lindo sábado de sol. Eu, dez anos de vida, fazia alguma coisa que não me lembro pois vivia uma infância cheia de afazeres brinquedísticos numa época que não existia internet. Era sei lá que horas da manhã quando minha mãe me avisou que o almoço estava pronto e que era pra eu comer caso ela não chegasse até 13h. E saiu de ônibus. Meu pai, trabalhando, me ligou meio dia e disse que estava indo para a maternidade porque meu irmão ia nascer. Perguntou se eu queria ir junto, falei que não. Eu não podia perder o almoço. Minha mãe me mandou almoçar 13h.

Deu 13:30h, eu almoçada, ele veio me buscar. Eu botei lá um vestido de festa que tava no caminho e fui. Crianças de 10 anos daquela época não sabiam se vestir muito de acordo. No fim deu certo, era mesmo uma comemoração.

Encontramos com os futuros padrinhos dele no elevador e passamos no berçário. Meu pai perguntava qual deles era meu irmão e eu via todo mundo bonito e dormindo e pensava que tinham todos a mesma cara. Mas ele não. Não tava nem bonito nem dormindo. Pelado, vermelho e comprido, ele ainda não tinha tomado banho.


Eu sempre quis ter um irmão, sabe? Quando eu era filha única (e passei longos 10 anos sendo filha única) na hora de ir embora todo mundo sempre tinha alguém pra ir junto menos eu. Todo mundo sempre tinha alguém pra brigar. Todo mundo sempre tinha alguém pra dividir a culpa nas artes e a palmada como consequência. Todo mundo sempre tinha alguém pra botar a culpa de alguma coisa. Menos eu. Mas eu aprendi cedo a assumir minha própria culpa (por não ter ninguém pra colocar) ou mentir deslavadamente (por não ter álibis). Mas todo mundo sempre tinha alguém pra fazer par pra jogar o que quer que fosse. Todo mundo sempre tinha alguém pra defender, por mais que irmãos briguem feito cão e gato. Porque eu sempre via que no fundo no fundo havia muito carinho entre irmãos. E eu não tinha nenhum.

Engraçado que eu acredite que a minha independência e individualidade de hoje se deva aos longos dez anos que passei sendo filha única. Hoje sou muito feliz por conseguir viver sozinha e penso que talvez a solidão pra sempre não seja tão ruim assim como todo mundo fala. Mas, diferente de hoje, quando eu tinha 10 anos eu me sentia sozinha. Muito sozinha.

Um irmão era sempre o que eu pedia pra minha mãe. De aniversário, de dia das crianças. Papai Noel deve ter recebido muitas cartas minhas com o mesmo pedido. "Ah, Papai Noel, eu quero um Boca Rica. E não esquece o meu irmão." O Boca Rica eu nunca ganhei, mas ele veio. ELE, porque eu já não era besta nem nada. Via as coleguinhas pedindo irmãs e pensava. Quem? Eu, dividindo minhas coisas? Eu, com uma irmã, pegando minhas roupas? Eu, disputando atenção e comportamentos com outra mulher? Não. Pra isso eu já tinha uma prima e uma tia, exatamente da mesma idade e com as quais eu dividi muitos aniversários, presentes iguais e roupas do mesmo modelo que mudavam só de cor. Eu queria um IRMÃO. Homem. Quieto. Na dele. E assim foi.


Dez anos mais novo, Daniel hoje faz 21 anos, mas pra mim ele vai ser sempre babybrother. Porque o que a gente tem não é só aquela coisa de irmãos de quando ele corre atrás de mim pra imobilizar meus dois braços com uma mão só, porque eu fiz cócegas. Nem quando eu faço maria-chiquinhas no cabelo dele enquanto está no computador. Tem também toda a minha preocupação por ele e o respeito, mesmo que ele morra negando, dele por mim. Porque dez anos a mais são uma vida. E talvez por isso eu não seja assim TÃO desesperada pra ter um filho desesperadamente com o primeiro cara que passar na rua, como toda mulher da minha idade solteira e sem filhos que conheço. Eu já sou meio mãe. Do meu babybrother.

Daniel é um cara de 21 anos e 1,90m de altura que se esconde atrás da porta pra me assustar quando chego pra almoçar. E grava episódios de Cavaleiros do Zodíaco pra ver comigo durante o almoço. Desenho preferido DELE, porque o meu Thundercats ele diz que é uma porcaria. Daniel faz batatas ao forno com vinagre balsâmico pra mim, receita que aprendeu assistindo o Jamie Oliver. Daniel me coloca a par de todo um mundo nerd de podcasts, filmes, jogos, livros, séries e discussões, de um mundo tão dele que muito pouca gente consegue entrar. Afinal é meu irmão, tinha mesmo que se parecer comigo em alguma coisa. Eu aos 31 anos me esforço a cada dia que passa para não envelhecer meus pensamentos e assim continuar pra sempre falando a mesma língua e participando ativamente do mundo dele. Daniel fez com que quase ninguém consiga ganhar de mim no Mario Kart. Só ele, claro. E, estudante de nutrição na Usp (matando a irmã mais coruja da face da Terra de tanto orgulho), enche meus pacovás nas refeições quase todos os dias. Eu sou o objeto de estudos dele. E dou graças a Deus todos os dias por ele não ter escolhido medicina. Ia ser lindo testar em mim estetoscópios, bisturis, seringas e coisas do tipo.

Vinte e um anos depois, hoje eu olho pra ele e ainda o vejo me chamando de Buú. Uma das primeiras palavras que ele aprendeu a falar. Porque me comparava ao Buiú, da Praça é Nossa. Tirava sarro da minha cara com poucos meses de vida e mesmo assim eu só conseguia ver o carinho que ele tinha quando me chamava. Vejo ele com poucos meses se esticando no meu colo de propósito enquanto minha mãe brigava comigo porque eu não o segurava direito pra tirar foto. E vejo a minha infância solitária assistindo meu Bambalalão e Thundercats sendo radicalmente trocada pela infância dele, de Pokémon, Cavaleiros do Zodíaco e Rá-tim-bum. Eu fui assistir Cavaleiros do Zodíaco no cinema, minha gente. Presta atenção.

Mas todo o meu mimo fraternal-maternal-corujal por ele vocês já sabem e leem todos os dias. O que não sabem é que, por mais que o mundo gire, a vida passe e o tempo voe, e por mais que a cada dia que passa eu me decepcione mais com as pessoas (não só as pessoas distantes, mas para meu desespero quanto mais próximas da gente mais cruéis as pessoas são - ou são as minhas expectativas com relação à elas), por mais que eu pense que o mundo é injusto e que todo mundo só pense no próprio umbigo e passem com trator em quem está do lado, por mais que eu me sinta triturada a cada dia por uma relação com essa ou aquela pessoa. Por mais que eu desacredite em relacionamentos, de qualquer tipo. Por mais que eu tenha fatos concretos que afirmem que ninguém se importa com ninguém e que na pequena oportunidade que essa pessoa que está aí, ao seu lado, vai te dar o bote e você vai ficar ali, parado, incrédulo. Sem ter o que fazer nem o que dizer. Materialmente ou sentimentalmente, o que é pior. Parentes, amigos, namorados. Completos estranhos que só pensam em si mesmos. E um belo dia você vai descobrir, da pior maneira possível e ouvindo as piores coisas possíveis de ser ditas.

Por mais que a cada dia que passe e eu pense que tenho que viver pra mim e por mim porque ninguém além de mim vai fazer isso. Por mais que eu me feche no meu casulo sozinha e com meus pensamentos e sentimentos, porque só eu dou importância pra isso. A cada dia que passa eu me protejo desse mundo injusto. Dessas pessoas sem coração, sem compaixão. Sem sentimento. Por mais que a cada dia que passe eu não só suba mais meus muros de contenção, mas também reforce-os a cada decepção. Ainda assim, tem uma porta. De 1,90m de altura. Para o Daniel entrar. E porque ele ia reclamar se tivesse que passar por um buraquinho.

E com ele eu sou o que eu sou. Sem pensar no que ele vai dizer ou deixar de dizer. Com ele eu tenho toda a paciência do mundo. E passo bastante tempo explicando e conversando sobre assuntos que com todas as outras pessoas do mundo eu não faço porque sei que é perda de tempo. Eu não perco meu tempo com o Daniel, nem quando estamos vendo os filmes mais alternativos que ele baixou da internet pra ver comigo. Com ele o tempo não é perdido, é aproveitado. E mesmo sabendo que ele também é humano e por isso também vai cometer seus erros que podem me decepcionar assim como todos os outros, ainda assim as chances dele de fazer a coisa certa comigo são infinitas. Com ele eu me preocupo, pra ele eu vivo. É ele pensar que tem dor de barriga e eu chegar com o papel higiênico. Ou parar desesperada no meio da Marginal Pinheiros porque ele olhou pra mim de repente e disse "preciso ir no banheiro e é agora". Daniel é o meu refúgio. É a minha força de pensar que a vida ainda vale a pena. Porque eu não estou sozinha. É olhar nos olhos dele e ter a certeza de que eu sou importante pra alguém. De saber que alguém ainda me ouve. Falando de séries, jogos, hamburgueres ou coisas do tipo, que seja. Porque ele é homem. E nunca vai querer me ouvir falar de relacionamentos e pessoas, coisas que as outras pessoas me obrigam a falar a respeito e eu nunca quero. Ele é perfeito por isso também. E é exatamente como eu sempre quis.

Daniel me levou e me incentivou a comprar o ingresso mais caro do show do Bon Jovi quando me viu prestes a chorar quando fiquei sabendo que a meia entrada tinha acabado. E comprou pra ele a entrada mais barata e mais longe possível do palco para que o montante da conta não fosse tão absurdo por isso. Ficou no último lugar da última arquibancada e deu tchau pra mim, daqui da grade da pista premium. Daniel foi no show do Bon Jovi só pra poder me levar pra casa de carro quando eu já não tivesse forças pra andar. Daniel foi, depois do Jon Bon Jovi, a pessoa mais importante do dia mais importante da minha vida. Mas no final das contas nesse dia ele só teve a importância que teve em todos os outros desses 21 anos de vida. É a minha vida. É o meu babybrother. ♥

9 comentários:

  1. Que declaraçãod e amor linda!
    Vou chorar.
    Sou filha única..sou muito emotiva nesses assuntos..
    Buááááá

    ResponderExcluir
  2. Nhaa, que lindo!

    Viva os IRMÕES! Eles são LINDOS :)

    Parabéns pra ele!

    ResponderExcluir
  3. Ah, bem que você disse, esse é seu texto mais amor que já li. De longe. E sabe, minha irmã também é grande parte d aminha vida. Aquela capeta pentelha. Sei viver sem não, ó. E esse negócio de ser filha única aí, nem deu pra eu saber como é... minha irmã nasceu um ano e 11 meses depois de mim (:
    HA!
    Beijo, moça.

    ResponderExcluir
  4. Sabe que às vezes tenho a impressão que já conheço um pouco o Daniel, do tanto que você fala do seu babybrother. Mas foi bacana ler isso. Agora, por exemplo, estou pensando e lembrando um monte de coisas. Gostei demais do texto.

    Bjo de boa noite.. :D

    ResponderExcluir
  5. Nem acabei de ler mas já protesto! Toda mulher da sua idade é desesperada pra ter filho não!!! eu tenho sua idade (bom.. agora tenho um ano a menos, mas vamos arredondar...) Eu prefiro cachorrinhos...

    ResponderExcluir
  6. Ah guria que fofo, toda felicidade pro babybrother!!

    Beijos

    ResponderExcluir
  7. juro que eu achava q esse babybrother era baby mesmo... mas 21 anos e 1,90m???? caraca, me enganou direitinho...
    =)

    ResponderExcluir
  8. Que amor, que lindeza, meu Deus!
    E cadê Daniel pra fazer um comentário mega fofuxo de resposta, pra gente se comover ainda mais?
    Acho que já disse que acho a relação de vocês muito, muito bonita e que é por esses depoimentos que vez ou outra me bate um bodezinho de ser filha única. Lindo esse amor!
    Felicidades mil pra ele, e pra você também. :)

    ResponderExcluir
  9. É muito verdade Rê. Ter irmão é ter alguém com quem dividir a culpa e as palmadas... Tirando o fato que em pelo menos metade das vezes que minha irmã mais nova estava em confusão, eu que a tinha colocado nela... hihihi
    Bjitos!

    ResponderExcluir